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3 - EXISTIU UM MATRIARCADO?

Atualizado: 29 de jan. de 2022


Escultura da Deusa Mãe Athirat, também chamada Asherah - detalhe de uma caixa de marfim de minat al-Bayda' perto de Ras Shamra (Ugarit), c. 1300 aC; no Museu do Louvre. Fotografo desconhecido.

Os poetas gregos da antiguidade foram mestres em relatar a existência de uma “ordem natural” das coisas, mantida pela figura de três seres femininos, as Erínias, que tinham por missão manter a ordem. Na Grécia matriarcal pré-helênica, elas se vingavam e puniam aquele que matasse seu parente próximo, sobretudo sua mãe. Na peça Orestia, do poeta Esquilo, Orestes, filho do rei Agamenon, mata a mãe, Clitemnestra, que juntamente com seu amante, havia matado o rei. Este e outros crimes de Orestes foram executados sob as ordens de Apolo, o que enfurece as Erínias, que saíram em sua perseguição. Levado a julgamento, este resultou num impasse, que foi decidio por Atena, a Deusa da Sabedoria. Seu voto deixou Orestes livre de qualquer castigo pelo matricídio. Insatisfeitas, as Erínias exigiram vingança.


Além de Ésquilo, inúmeros poetas gregos deram sequência a este mito, marco da passagem da tradicional ordem matriarcal para uma nova ordem em ascensão, a patriarcal.


Embora a discussão fosse ancestral, o termo MATRIARCADO só veio a ser cunhado pelo jurista e antropólogo suíço Johann Jakob Bachofen (1815-1887). Segundo ele, a organização social se deu com o modelo matriarcal e se estendeu por todo o período paleolítico, sobrevivendo até o neolítico. Apesar de não ser exatamente uma inovação, suas teorias não foram aceitas pelos seus pares, no século 19, provavelmente porque a sociedade daquele tempo não admitia tal protagonismo para as mulheres.


Apesar da influência das ideias propagadas por Bachofem, o nascente Movimento Feminista também as rechaçou por entender que a palavra MATRIARCADO poderia ser entendida como inversamente semelhante a PATRIARCADO, que é um sistema social em que os homens mantêm liderança política, privilégio social, controle dos bens materiais e o poder sobre a mulher e filhos. Defender a existência de um MATRIARCADO seria admitir a existência de um sistema social em que as mulheres mantiveram a liderança política, tiveram privilégios sociais, controlavam os bens materiais e exerciam total poder sobre o homem, o que nunca foi comprovado.


Adotar o termo seria admitir a hipótese de que, se atualmente o PATRIARCADO oprime a mulher, provavelmente no passado existiu um MATRIARCADO que oprimiu o homem.


O problema é que a ciência jamais encontrou evidências disso. Portanto, é inadequado usar o termo MATRIARCADO para que ele não seja interpretado como sendo um PATRIARCADO invertido.


Contrapondo-se à Teoria do Matriarcado, Riane Eisler (1931-) elaborou a Teoria da Transformação Social, onde o “modelo da parceria” - baseado primordialmente no “princípio da união” entre os dois sexos foi subjugado pelo “modelo da dominação” estruturado na supremacia do sexo masculino sobre o feminino.

Em uma entrevista sobre seus livros Eisler afirma que a imagem caricata do neolítico é simbolizada pelo homem das cavernas, que traz um porrete numa mão e na outra arrasta uma mulher pelos cabelos. Essa caricatura não só fala da dominação masculina, mas também de crueldade, violência e insensibilidade. No entanto, os estudos arqueológicos da arte paleolítica e neolítica não evidenciam essa caricatura nem mesmo remotamente. Pelo contrário, a arte na Idade da Pedra indica a dádiva da vida, não a sua eliminação, indica a parceria entre homem e mulher e não a supremacia de um sobre o outro.


Na verdade, a iconografia da Idade da Pedra indica que eles veneravam o poder de dar a vida. Ela escolheu “O cálice e a espada” para título do seu livro mais famoso porque são dois símbolos de poder. A espada é o símbolo da “dominação”, pois tem o poder de controlar, subjugar e tirar a vida. O cálice é o símbolo do acolhimento, do doar a vida e de nutri-la. A espada simboliza o falo. O cálice simboliza o útero.


Se na Idade da Pedra predominava o modelo da parceria entre os sexos, por que essa forma de organização social terminou e foi substituída pelo modelo “dominador masculino”?


Riane Eisler diz que há muitas teorias sobre isso. Uma teoria, que segundo ela é absurda, diz que isto aconteceu, quando o homem descobriu o seu papel na reprodução. Na verdade, esta hipótese está atribuindo ao homem uma burrice colossal. É claro que os homens viam os animais acasalando e associavam o ato ao posterior nascimento da cria.


Eisler aceita a teoria da existência de severas mudanças climáticas, que trouxeram muita seca e com ela a fome, fazendo com que enormes grupos populacionais migrassem em busca de sobrevivência, provocando o inevitável conflito com os grupos que já estavam assentados e que dispunham de meios de subsistência por viverem em regiões menos atingidas por tais mudanças.


Como na disputa pelo alimento, a força física e o manuseio de armas era mais importante que o acolhimento {inadequado numa situação de guerra}, o poder feminino cedeu lugar à força masculina. O sistema de parceria que havia moldado a civilização desde milênios cedeu lugar ao modelo dominador patriarcal.


Para compreender o modelo dominador patriarcal é necessário retomar as mudanças que foram sendo gradativamente assimiladas de, revolução em revolução, no longo percurso entre a humanidade primitiva até a atualidade.


Frederich Engels (1820-1895) foi um dos primeiros autores a contar essa história, tratada no livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado,onde denuncia a hipocrisia da instituição familiar, criada após a quebra da sociedade comunal e do surgimento da ‘propriedade privada’, que rompeu com o conceito de ‘nosso’ e fortaleceu a divisão entre o possuidor e o possuído, o que levou ao conceito de ‘herança’, ou seja, o desejo de transmitir ‘seus’ bens para os ‘seus’ descendentes, foram fatores determinantes para o surgimento do capitalismo e do Estado. Engels afirma que os valores da família tradicional se sustentam na subserviência da mulher e no patriarcalismo, servindo ambos apenas para a perpetuação do capitalismo.


Durante milênios os grupos pré-humanos e humanos foram nômades, viviam da coleta, da caça e da pesca. Não sabiam como produzir e conservar o fogo. Nestas condições, não havia individualidade, a família não existia. Sigmund Freud se refere a esse tempo como horda. As mulheres eram estupradas e o sexo se dava de forma animalesca. A Guerra do Fogo é um clássico do cinema e retrata muito bem esse momento da nossa história como espécie e do significado da tecnologia do controle do fogo para o avanço da humanidade.


Cena do filme “A guerra do fogo” (1981), de Jean-Jacques Annaud – imagem da internet


Richard Wrangham, professor de antropologia de Harvard, diz que as estimativas quanto as técnicas de cozimento dos alimentos são pouco precisas: algumas apontam que elas iniciaram há um milhão de anos, enquanto outras afirmam que começaram há apenas 50 mil anos. De qualquer modo, o autor acredita que o processo levou a uma divisão do trabalho entre os homens e as mulheres, pois cozimento impõe um atraso entre o momento da coleta de comida e o momento da refeição, o que significa que outros indivíduos poderiam roubar o alimento. Wrangham trabalha com a hipótese de um modelo simples de relacionamento social em que um grupo de indivíduos dominantes – os machos – protegeriam um grupo subordinado – as mulheres – encarregadas de cozinhar a caça trazida pelos homens. Segundo o pesquisador, esse padrão pode ser observado em muitas sociedades tribais, o que já o fez ser acusado de machismo.

https://hypescience.com/25920-cozinhar-nos-tornou-humanos/


No período nômade a disputa por alimento devia ser muito grande. Dominar a tecnologia do fogo foi um divisor de águas entre ser animal e ser humano. O fato de cozinhar o alimento permitiu que os seres humanos obtivessem uma enorme expansão do cérebro e consequentemente de suas habilidades. O domínio da tecnologia de produção e conservação do fogo foi a PRIMEIRA REVOLUÇÃO da humanidade. Contudo, por mais grandiosa que fosse, a utilidade do fogo não se resumia a cozinhar os alimentos, ele servia para iluminar a noite e o interior das cavernas, aquecer no frio e afugentar os predadores, fossem eles animais ou outros grupos humanos. É o que o filme A Guerra do Fogo mostra de maneira brilhante.


Depois do domínio do fogo se seguiu uma outra revolução de importância semelhante: A REVOLUÇÃO AGRÍCOLA! O ser humano deixou de ser coletor para plantar o próprio alimento. E mais uma vez isso mudou tudo!


É difícil saber quem veio primeiro. Se foram as técnicas agrícolas que promoveram o sedentarismo ou se o sedentarismo se tornou possível devido às novas técnicas agrícolas e pecuárias. O fato é que o desenvolvimento desse novo estilo de vida levou à formação de vilas, cidades e outras formas de comunidades.


De uma forma geral, os primeiros locais de assentamento de tipo ‘sedentário’ foram formados por pequenas aldeias de 100 ou 200 indivíduos. Quando as condições eram favoráveis, a população podia crescer notavelmente, como ocorreu em Jericó por volta de 8000 aC, época em que já existia uma fortificação que circundava o centro urbano. Com o passar do tempo, em diferentes partes do Mundo, surgiram grandes cidades, como entre os sumérios, egípcios e as civilizações do Vale do Indo.


Sigmund Freud, o criador da psicanálise, constrói a sua versão sobre o surgimento dos códigos da lei moral através do cumprimento das regras sociais. Freud não se dá ao trabalho de comentar os clássicos gregos, nem os autores do século 19 que analisam o papel da mulher nas sociedades ancestrais. Ele simplesmente parte do princípio que a sociedade sempre esteve organizada pelo e para o homem.


Em Totem e Tabu ele busca analisar a gênese dos totens – símbolos sagrados e respeitados – e dos tabus – proibições de origem incerta que cerceiam as liberdades individuais e coletivas de uma determinada sociedade. Para ele, estas são a origem de aquilo que mais tarde veio a se chamar direito penal, primeiras regulações que apareceram no seio das comunidades.


Freud constrói a história hipotética da “comunidade primeva”, constituída por um pai tirano e seus filhos, os escravos. Essa relação impedia que os filhos tivessem qualquer tipo de liberdade, já que o tirano tinha direito absoluto sobre tudo, incluindo as mulheres da comunidade. Os filhos, que ao fim se juntaram para aniquilar o opressor, praticam parricídio. Após a morte do pai, os filhos se dão conta que possuem força para fazer qualquer coisa, mesmo a mais tenebrosa, e que todos são tiranos potenciais. Logo, é necessário uma lei que organize a comunidade. Agora que as mulheres não são mais “privilégio” de um só homem, é preciso pensar em como serão ordenadas as suas relações com os demais membros do clã. A instauração da nova ordem explica a origem do tabu do incesto e, a partir dele, todos os outros. Sem entrar no mérito da teoria freudiana, o fato é que ele não levou em consideração a presença milenar da Grande Mãe. Ela era muito mais que uma simples mulher, ela representava a própria Natureza. Para entender isso basta compreender o significado dos símbolos venerados naquele passado longínquo. Há 10 mil anos a cidade de Jericó venerava Asherah, a Grande Mãe.



Asherah em alto-relevo cananeu / Crédito: British Museum

Ela não estava sozinha, seu consorte estava ao seu lado. A nudez dela e o falo erecto dele não deixam dúvida sobre o papel da sexualidade, considerada sagrada. Ela traz em suas mãos os alimentos que eram cultivados, essenciais para a manutenção da vida. Estar de pé sobre um leão, que simboliza a Natureza, mostra a identificação da Grande Mãe com a Natureza, mas não necessariamente dominação.


Antes da imposição do cristianismo pelo Império Romano, em toda a extensão, a Grande Mãe reinava absoluta. Contudo, levou muitos milênios para que sua transformação em Deus Pai se consumasse e, na verdade, ainda hoje podemos detectar os resquícios das antigas tradições. No Egito a Deusa Mãe era cultuada como a Deusa Árvore. Para os ditos ‘pagãos’ toda Árvore era Sagrada, assim como aquela da dava e nutria a vida.




A iconografia egípcia é vasta ao relacionar as deusas Hator e Ísis às árvores como a figueira, o pinheiro, a acácia e outras.


Hathor in the Sycamore" picture (from Tomb of Panhsy) courtesy of Chris Kingin http://sidneyrigdon.com/DRB/BEGIN/sycamore.htm


Frequentemente pinturas em tumbas mostram Hathor e Ísis inclinando-se de uma árvore para derramar vinho e oferecer pão às almas na vida após a morte, uma analogia com o sacramento da comunhão cristã. Merlin Stone faz exatamente essa comparação nas páginas 214-218 de seu livro, When God was a Woman (NY, HBJ, 1976), quando analisa a simbologia do sicômoro, que produz o figo selvagem.


Desde o início dos comentários rabínicos, os leitores do Gênesis têm tentado identificar a figueira sicômoro com a árvore bíblica do conhecimento do bem e do mal. Stone segue esse mesmo padrão, enfatizando o aspecto sexual de se ter conhecimento do bem e do mal. Ela também aponta a conexão entre as folhas da figueira e os órgãos genitais (uma associação também encontrada na religião mitraica). É provável que os devotos de alguns cultos de árvores se cobrissem ou se vestissem com folhas de árvores durante festivais especiais. Essas práticas podem ter ocorrido na adoração da Deusa Árvore Hathor e, de tão entranhadas nos costumes daquele tempo, foram aproveitadas pela iconografia rabínica da expulsão de Adão e Eva do paraíso, cobertos apenas com algumas folhas.


A figueira sicômoro é nativa da África oriental, floresce no Egito e é muito citada nos escritos hieroglíficos, mas, por ser árvore muito comum na Palestina, ela é citada igualmente na Torá e no Novo Testamento. Além dos frutos, sua madeira também era empregada na construção dos sarcófagos reais e estátuas.


Talvez a obra de arte mais famosa, feita com a madeira sicômoro e olhos de cristal, foi feita há 4.500 anos:



Considerada sagrada, a figueira era representada como uma deusa ou esta como uma árvore. A figueira era tida como manifestação das deusas Nut, Ísis e Hathor, intituladas “Senhoras da Figueira”. Sendo nativa do Egito, de tamanho e robustez úteis a diversas finalidades, a figueira sicômoro foi muito representada nas tumbas dos faraós, inclusive como símbolo do além vida.



Hathor, Nut e Ísis eram representadas como se fossem a própria árvore oferecendo comida e água ao falecido. Na tumba de Tutmose III, o faraó foi representado sendo amamentado no seio de “sua mãe Ísis” na forma de uma figueira. Na mitologia egípcia, Hathor tinha um papel especialmente importante na vida após a morte do falecido. Em representações de tumbas, o falecido era mostrado sentado sob ou próximo aos galhos de uma árvore (Hathor brotando do tronco) desfrutando da bebida oferecida pela deusa.



Cenas e inscrições mostram claramente uma ligação entre a Deusa da Árvore, o símbolo da renovação, e os mortos na forma do Ba, pois, na forma de um pássaro, a alma dos mortos era atraída e nutrida pela árvore. A identificação de várias divindades maternas como deusas das árvores também significava o papel acolhedor depois da morte: ser enterrado em um caixão de madeira era visto como um retorno ao útero da Grande Mãe.


A similitude da iconografia, da mitologia e dos cultos à Deusa Mãe no Egito e na antiga Canaã não podem ser desconsiderada quando se trata de entender os símbolos usados pelos primeiros patriarcas, pois que viveram no Egito. Tais símbolos foram assimilados, transformados e transmitidos no Antigo Testamento.


A história do Gênesis sobre o fruto proibido, os figos da ‘árvore do bem e do mal’ em Jeremias 24-8 e a maldição da figueira de Jesus nos evangelhos são todos mais bem compreendidos com o conhecimento do provável uso desse fruto nos cultos cananeus.


Os israelitas conheciam o figo silvestre (Amós 7:14) mas na época de Jeremias, pelo menos, os líderes religiosos não aceitavam mais qualquer uso do culto à árvore. A promulgação da história do Jardim do Éden foi parte de seu forte ataque às práticas não ortodoxas e o figo sicômoro foi denunciado como “o figo do mal”.


Israelite ceramic figure of a nude woman, identified as an Asherah pillar

A adoração de Asherah estava ligada ao culto de árvores em bosques sagrados pelos semitas, tradição que se estendeu até os celtas em toda a Europa. Bastava uma árvore frondosa para que a ligação mental surgisse, razão pela qual é dito no Antigo Testamento que Deus proibiu expressamente a presença de qualquer árvore junto ao Seu altar:


“Não estabelecerás poste-ídolo, plantando qualquer árvore junto ao altar do YHWH, teu Deus. Deuteronômio 16:21.


No Antigo Testamento um ‘Pilar Asherah’ é uma árvore sagrada ou algo que a represente, também chamado de ‘poste ou coluna”, que ficava perto de locais religiosos cananeus para homenagear a DeusaMãe Asherah. O culto a Asherah se estendeu por toda a região.



Referências às “colunas de Asherah” indicam que elas eram levantadas ao lado dos altares e, por ordem divina, tais peças foram derrubadas e a madeira usada como lenha para queimar seus “ídolos”.


Assim vocês tratarão essas nações: derrubem os seus altares, quebrem as suas colunas sagradas, cortem os seus postes sagrados e queimem os seus ídolos. Não ergam nenhum poste sagrado além do altar que construírem em honra ao Senhor, o seu Deus e não levantem nenhuma coluna sagrada, pois isto é detestável para o Senhor, o seu Deus. (Dt 7:5, 16:21)


Naquela mesma noite, o Senhor lhe disse: "Separe o segundo novilho do rebanho de seu pai, aquele de sete anos de idade. Despedace o altar de Baal, que pertence a seu pai, e corte o poste sagrado de Aseráque está ao lado do altar. Depois faça um altar para o Senhor, o seu Deus, no topo desta elevação. Ofereça o segundo novilho em holocausto com a madeira do poste sagrado que você irá cortar". (Jz 6:25)


Destruireis totalmente todos os lugares, onde as nações que possuireis serviram os seus deuses, sobre as altas montanhas, e sobre os outeiros, e debaixo de toda a árvore frondosa; e derrubareis os seus altares, e quebrareis as suas estátuas, e os seus bosques queimareis a fogo, e destruireis as imagens esculpidas dos seus deuses, e apagareis o seu nome daquele lugar. Assim não fareis ao Senhor vosso Deus. (Dt 12:1-6)


Porque também eles edificaram altos, e estátuas, e imagens de Aserá sobre todo o alto outeiro e debaixo de toda a árvore verde. (1Rs 14: 22,23)


E os filhos de Israel fizeram secretamente coisas que não eram retas, contra o Senhor seu Deus; e edificaram altos em todas as suas cidades, desde a torre dos atalaias até a cidade fortificada. E levantaram, para si, estátuas e imagens do bosque, em todos os altos outeiros, e debaixo de todas as árvores verdes. E queimaram ali incenso em todos os altos, como as nações, que o Senhor expulsara de diante deles; e fizeram coisas ruins, para provocarem à ira o Senhor. E serviram os ídolos, dos quais o Senhor lhes dissera: Não fareis estas coisas. (2Rs 17:7-12)


Pilar Asherah na cidade de Alexandria. Wikimedia Commons

Os textos antigos da cidade de Ugarit (1500 aC) se referem a ela como ‘Athirat’. A palavra ‘Asherah’ vem de ASHER, um termo hebraico que significa “feliz”. Apesar de não se conhecer detalhes dos ritos pagãos, sabemos que estes colocavam seus ASHERIM (pilar ou coluna), nos lugares considerados sagrados, tradição que permeneceu em Alexandria. Tais pilares poderiam ser literais usados em locais públicos ou domésticos, fartamente encontrados nas escavações em Jerusalém e cercanias.


Dois tipos principais de estatuetas de pilar da Judéia foram encontrados. Um tipo tem uma face comprimida para formar dois olhos (Esquerda, Foto: Museu de Israel, Jerusalém). O segundo tipo tem uma cabeça feita em molde com traços faciais definidos e fileiras de cabelo encaracolado.

(À direita, Foto: Metropolitan Museum of Art).


No Egito dos faraós a tradição de colocar pilares e colunas que sustentam o teto com a imagem da Deusa Mãe Hator esculpida em seus capiteis foi literalmente levada a cabo pelos construtores, pois o teto de inúmeros templos eram sustentados por ela. Essa tradição foi mantida na Grécia, mesmo que as mulheres homenageadas fossem as musas.

O capitel tem rosto humano remetendo a deusa Hátor e no alto da cabeça há um pequeno templo.

Milênios depois, agora em terras da Palestina, por volta de 2 000 aC, a guerra contra Asherah foi implacável. Elias, no seu combate aos seguidores das antigas religiões a quem ele chamou de ‘falsos profetas’, clama:


Convoque todo o povo de Israel para encontrar-se comigo no monte Carmelo. E traga os quatrocentos e cinquenta profetas de Baal e os quatrocentos profetas de Aserá, que comem à mesa de Jezabel.” (1Rs 18.19).

Quem adorava Asherah fazia seu culto através de pilares-ídolos, feitos com pedaços de troncos de árvore ou árvores vivas. Porém, na guerra travada contra a Deusa Mãe, os israelitas eram proibidos de visitar bosques sagrados e até mesmo de manter uma árvore nas proximidades do altar dedicado ao Deus de Israel, razão pela qual a expressão ‘árvore verde’, que aparece inúmeras vezes ao longo do Antigo Testamento, tenha uma conotação negativa, ao menos na perspectiva dos profetas e patriarcas.


Apesar de demonizada, a tradição de cultuar a Deusa Mãe simbolizada em uma árvore jamais foi abolida por completo. Essa tradição chegou até nós pela colonização europeia e suas festividades natalinas. A árvore de natal e o panetone nada mais são do que resquícios desta tradição milenar. Pois é, quem diria! A árvore enfeitada representa a Grande Mãe, aquela que amamenta, nutre e cuida, mesmo depois da morte. Os ‘bolos de passas’oferecidos à “Rainha do Céu” são a oferta sacrificial oferecida por seus filhos:


...ainda que eles tenham se voltado para outros deuses e amem os bolos de passas [oferecidos a eles]”. (Oséias) 3:1.


...e fizemos bolos na forma de sua imagem e derramamos ofertas de bebidas para ela...” (Jeremias) 44:17;


As crianças colhem a lenha, os pais acendem o fogo e as mulheres misturam a farinha para fazer bolos para a rainha do céu…” (Jeremias) 7:18.


The Jewish king Asa destroys the idols of polytheists.Wikimedia Commons


Assim explica o professor Antonio Carlos Frizzo em Divindades roubadas: cultos populares no livro dos Juízes: Na Jerusalém, agora considerada santa por excelência, após a reforma de Josias, não há lugar para outros deuses e deusas, exceto Javé. Não é difícil apostar que esse discurso, eminentemente beligerante, solapou antigas estruturas religiosas. Pessoas e grupos, estruturas administrativas e tradições populares foram derrotados e subjugados em nome de um projeto exclusivista para Javé.


A divindade de nome Javé foi introduzida na região por determinado clã. O nome Javé ecoa de modo estranho na cultura de Canaã (Dt 33,2; Jz 5,4). Lentamente, a divindade Javé integrará o panteão das divindades e receberá, como atributo, a marca da guerra (Êx 14,14; Jz 4,14-15). As nações não conheciam um Deus de nome Javé, considerado como “um” (Dt 6,4) e celebrado como “Deus dos deuses” (Sl 137, 2-3).


Quando o culto a Asherah foi proibido e seus altares destruídos (2 Reis 23.4-7), os

atributos da Deusa foram transferidos dela para YHWH, que começa a ser descrito como um Deus solitário, único e sem consorte. Se ela era a Deusa da Fertilidade, agora esse atributo é dele, se ela era simbolizada pela Árvore Sagrada, agora a Árvore é dele. Se a Natureza simbolizava a Deusa – e vice-versa – agora a Natureza tem que ser dominada pelo homem, feito à imagem e semelhança Dele.


E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. Gênesis 1:26

{e a mulher foi considerada um animal a ser dominado}


Começar cada dia escutando dos homens judeus: "Bendito sejas Tu, Eterno, nosso Deus, Rei do Universo que não me fizeste mulher" não é agradável para mulher alguma que, por sua vez, deve proferir com "resignação" as palavras "Bendito sejas Tu, Eterno, nosso Deus, Rei do Universo, que me fizeste segundo Tua vontade". Essas bênçãos fazem parte da liturgia tradicional judaica dentro do conjunto de "agradecimentos a Deus" conhecido como "Bênçãos matinais" recitadas toda manhã ao despertar. Essas bênçãos não são consideradas problemáticas apenas para a nossa geração, posterior à "revolução feminina", mas incomodaram também as gerações que nos precederam. E as explicações ou "soluções" tentadas em diferentes épocas não foram suficientemente convincentes. A história dessas bênçãos - e as reações que geraram em mulheres e homens judeus - poderia servir de roteiro do lugar das mulheres dentro do Judaísmo em diferentes momentos históricos, diz a rabina Sandra Kochmann. (O Lugar da Mulher no Judaísmo)


E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, do lado oriental; e pôs ali o homem que tinha formado. E o Senhor Deus fez brotar da terra toda a árvore agradável à vista, e boa para comida; e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal.Gênesis 2:8,9


Apesar de demonizada, a tradição de cultuar uma árvore como sendo a Deusa Mãe jamais foi abolida por completo, como demonstramos achados arqueológicos, como esse altar doméstico que faz parte do acervo do Museu de Israel:


Da coleção do museu de Israel. Wikimedia Commons

A árvore e as figuras femininas gravadas na fachada do artefato votivo central da imagem acima, bem como a estatueta de árvore do lado direito, são representações de Asherah. Na impossibilidade de suprimir a lembrança da Deusa das mentes e corações dos pagãos, o judaísmo tomou para si tais símbolos ressignificando-os para adorar o Deus Pai, YHWH, que fez o homem à sua imagem e semelhança. Muito antes de se chamar Asherah a Deusa Mãe foi simbolizada pelas primeiras civilizações do Oriente Médio, na antiga Mesopotâmia.


Assyrian stone relief. Mesopotamia, Nimrud. The Metropolitan Museum of Art.

Cada religião transmuta e impõem como seus os símbolos da crença anterior. Esta é uma prática muito antiga e não foi diferente com o judaísmo.





Árvore da Vida é um sistema cabalístico hierárquico em forma de árvore, que é dividida em dez partes, ou dez frutos. Esses frutos podem ser interpretados como relacionado ao universo, ou como estados de consciência. A Árvore da Vida também é dividida em três colunas (como os pilares de Asherah). A da esquerda é conhecida como pilar da severidade, é o pilar feminino e a da direita é o pilar da misericórdia, masculino (!?).


Milênios antes do aparecimento de Abraão {embora a arqueologia nunca tenha comprovado sua existência}, considerado o primeiro patriarca hebreu e iniciador das concepções judaicas, a Árvore da Vida já era registrada em artefatos.


4000 AC (ou mais antigo) Monte Domuztepe. Mesopotâmia.

Arqueólogos desenterraram objetos retratando motivos da Árvore da Vida durante os trabalhos de escavação no Monte Domuztepe {Turquia} e encontraram figuras de pinheiros em alguns vasos, como na imagem acima, e isso é muito interessante, além de importante, já que o pinheiro não é uma árvore comum na região. Por esta razão, creem os estudiosos que tal árvore está relacionada a um sistema de fé, tal qual o desenho abaixo que, embora encontrado na antiga Mesopotâmia, ele é uma representação fidedigna do castiçal Menorá, utilizado posteriormente pelos hebreus.

Antes de 3000 aC. Vaso de pedra da Mesopotâmia.

The Adam and Eve Seal, British Museum

De acordo com o assiriologista finlandês Simo Parpola todo o sistema da Cabala deriva da Árvore Sagrada mesopotâmica. O foco principal de sua pesquisa tem sido o estudo do Império Neo-Assírio em todos os seus aspectos (língua, literatura, história, geografia, sociedade, religião e ciências), mas ele também tem contribuído para o estudo da escrita do Indo, da língua suméria, do misticismo judaico e da identidade assíria nos tempos pós-império, entre outros. Segundo Parpola, em estudo publicado em 2004 intitulado: Monte Nisir e as Fundações da Igreja Assíria, argumenta que as Religiões do Livro (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) foram construídas sobre as concepções lançadas pela Assíria.


Como podemos constatar, a Árvore da Vida, um dos símbolos da Asherah canaanita, tem sua origem em deusas muito mais antigas que ela, comprovando que a trajetória da Deusa Mãe persiste ao longo dos milênios, desde a Suméria. Contudo, será isso suficiente para afirmar que houve um matriarcado? Segundo os estudos modernos não!


Se há sérias dúvidas se houve ou não um matriarcado, tem-se a certeza que o patriarcado existiu. O mito de origem da sociedade ocidental, mais precisamente o mito da criação judaico-cristã, pode ajudar a entender como, quando e onde começou o patriarcado.

Michelangelo BuonarottiCapela Sistina - Wikimedia Commons

É sabido que as grandes mudanças não acontecem isoladamente, toda mudança é fruto de um conjunto de pequenas transformações que vão se avolumando e se aprofundando até serem catalisadas numa nova situação. Assim foi com o patriarcalismo e monoteísmo, dois lados da mesma moeda. Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?


Casa Mãe Terra – Parque das Dunas. Natal. Rio Grande do Norte

Os dados científicos da arqueologia, antropologia e outras ciências demonstram que o culto ao feminino foi, se assim se pode afirmar, espontâneo. Associar o poder da Natureza com os poderes femininos foi apenas um passo. O culto ao Princípio Feminino é de tamanha longevidade que, para a ciência, antes dele não existiu outro, ou seja, nunca existiu anteriormente um culto ao masculino, que só apareceu por volta do ano 2.000 aC, durante as grandes migrações indo-arianas. Além da extrema longevidade, outros enigmas envolvem o culto à Grande Mãe, como, por exemplo, esse artefato encontrado na Bolívia, chamado de Fuente Magna.




Em 1950, esse artefato excepcional foi descoberto na propriedade da família Majon, na cidade de Chúa, próxima de Tiahuanaco e La Paz, Bolívia. Era um vaso de cerâmica de barro cozido com inscrições sumérias, proto-sumérias, proto-semíticas ou proto-hebraicas e caracteres de culturas locais. O arqueólogo boliviano Max Portugal-Zamorra, através da mediação do general Armando Escobar Uria, fez uma oferta para a família Manjon, que aceitou trocar a sua propriedade por um pedaço de terra em outro bairro, podendo o arqueólogo trabalhar livremente no local. Mas como não conseguiu identificar as inscrições, o vaso foi levado ao Museu de Metais Preciosos “Museo del Oro” em La Paz.

Em 2000, o argentino Bernardo Biados e o boliviano Freddy Arce, viajaram a Chúa, fotografaram o artefato e enviaram as fotos das inscrições a Clyde Ahmed Winters, que decifrou as gravuras enigmáticas dentro da Fuente Magna e confirmou que se tratava de um texto na língua proto-suméria. É muito provável que a Fuente Magna tenha sido usada como vaso sagrado para cerimônias de culto da fertilidade e de busca pela pureza. Segundo alguns pesquisadores, o baixo-relevo no interior da Fuente Magna é a representação de Nia, a deusa dos sumérios. “Nia” ou “Namu” é a deusa suméria que identifica o “Abismo das águas no Oceano Primordial. Ela foi a primeira divindade e origem do todo. Deusa do nascimento, seu local de culto era na cidade suméria de Ur. Os demais símbolos que se encontram nas laterais do baixo-relevo e na parte adjacente às incrições proto-sumérias, foram interpretados como Quellca, a linguagem escrita da civilização Pukara, mas continuam sem serem decifrados. No exterior do vaso existem alguns baixos-relevos zoomórficos que remetem à cultura Tiwanaku: peixe e cobra.

Com a interpretação dos caracteres cuneiformes veio o espanto e o questionamento inevitável: como é possível existirem inscrições proto-sumérias em uma fonte encontrada perto do lago Titicaca, dezenas de milhares de quilômetros da cultura suméria? Entretanto este não é o único artefato de origem suméria encontrado na América do Sul. Os objetos encontrados na Gruta Los Tayos, no Ecuador, são apenas mais um dos inúmeros enigmas a serem decifrados. Apesar dos mistérios, é inquestionável o papel da Grande Mãe nos mitos civilizatórios, onde o parto é o evento mais importante.



Como decifrar a mitologia de uma sociedade sem escrita? Em geral, os arqueólogos têm o cuidado de não se envolver em interpretações simbólicas, limitando sua tarefa principal a datar e classificar os materiais encontrados. Porém, a arqueóloga lituana Marija Gimbutas (1921-1994) ousou transgredir esta proibição. Ela se empenhou em reconstituir o universo mental das sociedades pré-históricas graças a uma nova abordagem: a “arqueomitologia”, cujo objetivo é decifrar a “escrita” pictórica da religião ligada à Grande Deusa da velha Europa.


Por 25.000 anos, os primeiros europeus devotaram um culto a esta deusa, símbolo da natureza e fonte de vida, que dá à luz filhos e cultiva plantas. Então, por volta do 5º milênio aC, povos indo-europeus, guerreiros ferozes, criadores de cavalos, teriam assumido o poder sobre as sociedades agrárias e imposto sua linguagem, seu poder, seus mitos: deuses masculinos, autoritários e violentos, teriam então rechaçado as deusas pré-históricas a um passado distante. Esta, em linhas gerais, é a história antiga da Europa, conforme reconstruída por Marija Gimbutas a partir de sua pesquisa arqueológica.


Gimbutas descobre que todo o simbolismo da deusa estaria ligado ao ciclo da vida, “o mistério do nascimento e da morte, da renovação da vida, não só da vida humana, mas de toda a vida no planeta”. A linguagem da Deusa é o ponto culminante e a síntese de sua pesquisa sobre a deusa da pré-história. A Grande Mãe é antes de tudo “aquela que dá vida”. É por isso que está associada à água, fonte de toda a vida, e por extensão às aves aquáticas, às rãs e aos peixes. O símbolo da água se confunde com o “V” pubiano e com o “M” formado pelas pernas da Grande Mãe ao dar à luz.


Gimbutas sustenta que a letra M também está relacionada em sua origem com os símbolos sumérios, egípcios e fenícios para ‘água’ atribuído a todas as águas: mares, rios, lagos, inclusive ao líquido amniótico. Na maioria das línguas “mãe”começa com a letra ‘M’.

Marija Gimbutas não aderiu à tese de um “matriarcado primitivo” nem defende que os tempos pré-históricos foram marcados por um poder dominante das mulheres. Ela afirma explicitamente que a presença da Grande Mãe reflete uma “Cultura Gilânica, isto é, de parceria. onde o poder entre os dois sexos é mais uniformemente distribuído. Esta cultura se opõe a uma “Cultura Androcêntrica”, androcrático e hierárquico, onde a estrutura social é dominada pelo sexo masculino com base no modelo patriarcal.


Riane Eisler afirma que houve no neolítico sociedades de parceria em que não existiam hierarquia e dominação entre homens e mulheres, que cultuavam a figura da Grande Mãe, símbolo da harmonia entre os homens e a natureza e modelo de sociedade de parceria.


Depois de 10 anos de pesquisa, promovendo uma releitura minuciosa da história, Riane mostra como a invasão de povos indo-europeus, durante o neolítico, em várias regiões da Europa, foi difundindo, pelo símbolo da espada, o poder da destruição, da dominação, da guerra e da cultura da violência para povos que conheciam até então, pelo símbolo do cálice, o poder da criação, da parceria, da colaboração entre os sexos. Esta sociedade pacífica, baseada em valores criativos e sem hierarquia entre os sexos, chama-se sociedade de parceria, pautada na cultura gilânica. Já a sociedade hierárquica, difusora da violência, é chamada de sociedade de dominação, pautada na cultura androcrática.


O valor supremo dos invasores era o poder de tirar a vida, e não o de dar a vida. Esse é o poder simbolizado pela Espada ‘masculina’, e literalmente venerado pelos primeiros invasores indo-europeus. Pois, na sua sociedade dominadora, governada por um Deus Único e por homens guerreiros, esse era o poder supremo. Até Quando?






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