Aiwok. Wikimedia Commons
Os estudiosos ainda debatem sobre a origem do mito de Lilith. Muitos afirmam que sua criação foi inspirada nos mitos sumérios e mesopotâmicos que tratam sobre demônios, que eram chamados de Lilim, sendo depois absorvidos pela mitologia judaica, onde Lilim é um termo para designar espíritos maléficos noturnos. {feminino é Lili e masculino Lilu, ambos no singular}
A mitologia suméria diz que o homem foi criado com o sangue de um deus misturado a argila. Sua criação foi solicitada por Enlil e executada por dois outros deuses, Enki e Ninhursag. A nova criatura recebeu a denominação de Lulu, termo genérico para "trabalhador". Eles serviam aos deuses e andavam nus.
Vaso de Templo de Warka, Uruk, datado de 3.100 aC. Pinterest
Detalhe: Um Lulu entregando oferenda para a deusa Inanna.
Foto de Osama Shukir Muhammed Amin - Wikimedia Commons
Brigitte Couchaux demonstra que o nome de Lilith vem de uma linhagem semítica e indo-europeia. O termo “lil”é encontrado no nome do deus sumério, Enlil, que significa vento, ar, atmosfera. Pode ser um vento bom como a brisa ou tempestuoso como um furacão. Também pode ser um vento ardente como as areias do deserto que, segundo a crença popular, era responsável pela febre das mulheres depois do parto, matando-as, assim como os recém-nascidos. Primitivamente, Lilith pode ter sido uma das grandes forças hostis da natureza, por isso demoníaca. Afinal, como explicar a altíssima taxa de mortalidade puerperal naquele tempo, quatro milênios antes da nossa era? Certamente deveria ser provocada por demônios!
Duas outras linhas de pesquisa permitem aproximações de seu nome com a raiz indo-europeia “la” (gritar, cantar) e com a palavra grega “law”. De “la” deriva o sânscrito “lik” (lamber) e um grande número de palavras relacionadas com a língua e com os lábios: Lippe (alemão), lippe (francês), labium (latim); A palavra “law” se relaciona com lux (latim), luz (espanhol), light (inglês) e licht (alemão) e dá a ideia de luz, de “ver com uma visão penetrante”, “libertar-se da obscuridade”. Estas duas origens para explicar o nome de Lilith demonstram sua ambiguidade, um polo devorador de crianças e no polo oposto aquela que pode libertar-se da escuridão.
COUCHAUX, Brigitte. Lilith. In: BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. RJ: José Olympio, 2005. https://www.fantasticacultural.com.br/artigo.php?id=98&titulo=lilith_antes_de_eva_-_o_mito_da_primeira_mulher_da_criacao
Peça Burney - Wikimedia Commons
Lilim, Lili, Lilu, Lulu, Lilith parecem nomes cuja origem é a mesma: serviçais e demônios. Lilith é fruto das lendas ancestrais, transmitidas oralmente de civilização em civilização. Ela não é criação dos judeus, embora seu mito tenha sido apropriado por eles.
No entanto, a origem suméria de Lilith não é consenso entre os estudiosos. Joshua J. Mark diz que a peça, cuja imagem de uma mulher foi atribuída a Lilith, chama-se Burney Relief ou Peça Burney, adquirida por Sydney Burney de um negociante de antiguidades sírio. Sua datação é estimada torno de 1.800 aC, mas esta data é imprecisa, pois ela não foi encontrada por meio de escavação arqueológica, tendo sido simplesmente removida do Iraque, em algum momento entre os anos 1920 e 1930 dC. Mas sua origem é certamente a Mesopotâmia, atual Iraque, provavelmente durante o reinado de Hamurabi (1792-1750 aC), uma vez que a peça compartilha características com a famosa estela de diorito das leis de Hamurabi, atualmente no Museu Britânico.
A peça retrata uma mulher, alada, com pernas que se estreitam e terminam em garras de pássaro e detalhes nas panturrilhas que se assemelham a esporas. Quem seria esta mulher? Três personagens são suscitados: Inanna, Ereshkigal e Lilith.
Inanna é uma antiga deusa mesopotâmica associada ao amor, ao erotismo, a fecundidade e a fertilidade. Apesar de ser cultuada em todas as cidades sumérias, era especialmente devotada em Ur, mais tarde adorada pelos acadianos, babilônios e assírios sob o nome de Ishtar, ou Rainha do Céu. Devido ao culto prestado a Inanna, numa época de perseguição à mulher, a sacerdotisa Enheduanna foi expulsa do Templo de Ur. {voltaremos ao tema}
Ereshkigal é uma das grandes divindades sumérias, filha de Anu, o Senhor do Céu e Namu, a Senhora dos Oceanos e irmã gêmea de Enki. O seu nome significa “Senhora da Grande Habitação Inferior” ou ainda “Senhora dos Vastos Caminhos”, eufemismos para se falar do Inferno, terra cujos caminhos são infindáveis, sem rumo certo e “Terra do Não Retorno”.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Eresquigal
Lilith, Embora tenha raízes sumérias, seu nome foi imortalizado pela tradição hebraica, na qual foi a primeira mulher de Adão, a que recusou se submeter às demandas sexuais dele, o deixou, e rebelou-se contra o Criador, tendo sido transformada em demônio.
Joshua J. Mark pondera que a peça em relevo não pode ser Lilith, pois a mulher representada usa o cocar com chifres de uma divindade e segura o símbolo sagrado da haste e do anel em suas mãos levantadas. Somente aos deuses era permitido serem retratados com este tipo de toucado. Lilith nunca foi considerada deusa por nenhuma tradição, nenhum mito, portanto, não pode ser ela.
Mesmo que a placa Burney não seja a representação de Lilith, nas Escrituras judaico-cristãs ela é personificada na serpente, também chamada Lilith, representada com asas, como nesta tela de Yuri Klapouh (1973) exposta no Museu de Kiev.
http://artenocaos.com/historia/voce-ja-ouviu-falar-da-lilith-vem-ver-essa-pintura/
O mito de Lilith vem da tradição hebraica, mas sua semelhança com LILITU, personagem demoníaca originária da Mesopotâmia, demonstra que o sincretismo religioso é um artifício muito antigo, usado por todas as religiões, comprovando que cada nova religião se apoia nas crenças, ritos e mitos das anteriores.
O mito de Lilith tem o objetivo de mostrar como o Criador trata uma transgressora, além de funcionar como contraponto para o surgimento de Eva, a submissa, e da mãe de família nas religiões abraâmicas. Eva foi criada pelo judaísmo para substituir a figura da Grande Mãe politeísta. No entanto, no cristianismo, Eva foi substituída por Maria {Teotokos - Mãe do Salvador}, aquela que se manteve virgem antes, durante e depois do parto {ao menos no dogma cristão, por mais inverossímel que isso seja}.
Quanto ao termo família, ele foi cunhado na época do Império Romano e a Igreja Católica se apropriou da palavra e do seu conceito. Em latim, “famulus”, são os escravos e servidores que vivem sob o teto do proprietário. Família é derivado do latim “famulus” que significa “escravo doméstico”. Este termo foi criado na Roma Antiga para designar um novo grupo social que surgiu entre as tribos latinas, em uma época que a escravidão era legalizada. Nesta época, predominava uma estrutura familiar patriarcal, em que um vasto leque de pessoas se encontrava sob a autoridade do Pater Familias.
Pater famílias significa literalmente “Pai de família”. O termo seria originário do grego helenístico para denominar um líder de comunidade. Seu uso aparece pela primeira vez entre os hebreus no século IV para qualificar o líder de uma sociedade judaica. A palavra pátria é derivada desse termo. Pátria relaciona-se ao conceito de país, do italiano paese, por sua vez originário do latim pagus, que significa aldeia, de onde também vem pagão. Pátria, pai, patriarcado e pagão são termos que tem a mesma raiz.
Segundo Joseph Campbell os hebreus foram os primeiros a usar o termo pai. Moisés deu aos hebreus o decálogo. Os Dez Mandamentos tem função religiosa, mas também de legislação civil. O mandamento "honrar pai e mãe", destaca a figura do pai. Com ele Moisés e o monoteísmo estabelecem nova ordem social, com um só Deus, um só pai, uma família. Nessa nova configuração a mulher passou para o segundo plano, porque todo o poder se concentra a partir de então na figura do pater familias, palavra que destaca, por um lado, o pai, por outro, o conjunto da mulher, filhos, criados, servidores, ou seja os fâmulos, de onde vem a palavra família.
A Eva judaica inaugura o controle da sexualidade feminina, reprimida para cumprir sua nova missão, a maternidade, e ocupar um novo espaço, a de mãe de família. Essa missão foi renovada pelo cristianismo ao criar o modelo de Maria, onde a sexualidade foi completamente abolida, ficando apenas como símbolo da maternidade, condenada a ser eternamente virgem.
ENTRE FOGUEIRAS
Anneken Hendriks, uma anabatista do século XVI condenada por heresia. Wikipédia